Na década de 1980 dirigiu, em São Paulo, o jornal do PCB Voz da Unidade, que foi vendido legalmente nas bancas. Azedo o dirigiu até seu último número, em fins de janeiro de 1992.
Meu nome é Luiz Carlos Azedo, sou jornalista, hoje em dia trabalho no Correio Braziliense aqui de Brasília, sou repórter especial e minha área de cobertura é a política. Mas durante um bom período da minha vida, fui dirigente do PCB, atuando no Rio de Janeiro, atuando em São Paulo na Executiva Nacional, e tive oportunidade de conviver com o Arouca em várias situações políticas. Tenho, tinha uma grande admiração por ele, acho que ele deixou um legado que ultrapassa em muito as atividades políticas que ele desenvolveu, porque formou muita gente, deixou um patrimônio de conhecimento, marcou a história da medicina no Brasil, e teve um papel importante em conjunturas políticas decisivas da nossa História. A primeira vez que eu vi o Arouca foi num ato político na ABI. Ele me chamou atenção por três razões: primeiro pela calva, que já era proeminente naquela época; outro, porque falava muito bem, com entusiasmo, era um orador fascinante, seduzia as pessoas que o ouviam; e terceiro, pela coragem política, porque em plena ditadura ele fez um discurso muito firme, defendendo a democracia, defendendo a anistia. E eu, que nessa época já era militante do Partidão com uma certa experiência, imediatamente identifiquei o Arouca como um companheiro do partido, embora eu não soubesse à época que ele era militante do PCB, mas pelo discurso dele você via que ele era um cara do partido. Ele nessa ocasião era a principal liderança do movimento médico no Rio de Janeiro, fazia uma campanha grande pela renovação do Conselho Regional de Medicina, depois houve uma eleição muito disputada no Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, e também um movimento muito forte dos médicos no sentido de se organizarem em cooperativas. Em tudo isso o Arouca tinha algum tipo de influência ou participação direta. Mais tarde ele foi pra Nicarágua (no período da Revolução Sandinista) combater uma epidemia de dengue hemorrágica. Aí se afastou do convívio com a esquerda do Rio de Janeiro. A esquerda do Rio de Janeiro estava articulada, e o partido do Rio de Janeiro teve uma influência grande nisso, mas outras forças de esquerda também participaram disso. Muito articuladas, seja em função das lutas sindicais, da retomada dos sindicatos das mãos dos pelegos, seja em função da campanha da anistia, seja em relação ao processo eleitoral. O Rio de Janeiro sempre foi um estado oposicionista (o regime militar nunca conseguiu ganhar uma eleição no Rio), e o processo eleitoral era um processo importante – sempre foi, desde a eleição de Negrão de Lima. A esquerda tinha presença nisso. E nessa articulação então as pessoas acabavam se conhecendo, e as lideranças transbordavam as suas categorias. Então o Arouca não era só uma liderança médica, era uma liderança da esquerda no Rio de Janeiro. Então ele foi pra Nicarágua – e se não tivesse ido pra Nicarágua, eu tenho a impressão de que ele provavelmente teria sido preso. A barra começou a pesar, as pessoas mais identificadas com o partido, como militantes do partido, eram perseguidas, detidas, não era fácil manter uma atividade política legal sob aquela pressão, que as pessoas mais “queimadas” sofriam. Então ele foi pra Nicarágua e fez um trabalho extraordinário lá. Eu tenho a impressão de que essa experiência dele na Nicarágua, junto com uma tradição política dos médicos ligados ao partido, permitiu que ele formulasse uma política sanitária renovadora. A questão sanitária no Brasil sempre foi uma questão política. Aquela Revolta da Vacina no Rio de Janeiro... Sempre foi uma questão política. Ela foi sempre tratada de uma maneira retrógrada e conservadora, até racista. Até o começo do século, existiam muitos estudos na área sanitária que tinham características racialistas, que tratavam dos problemas de saúde do povo como conseqüência da sua origem – indígena, africana, ou mesmo lusitana, porque até os portugueses... Havia assim uma forte influência cultural na questão sanitário no Brasil. Isso é uma batalha que sempre foi política, e grandes lideranças políticas do país surgiram no processo de luta, de defesa da saúde pública. E o Arouca, vamos dizer assim, faz parte dessa estirpe de grandes sanitaristas. Você pode equiparar o Arouca a um Oswaldo Cruz, pela importância que ele tem na história da saúde pública no Brasil. Mas vocês que são sanitaristas entendem mais disso do que eu.
Depois o Arouca voltou pro Brasil, veio o processo de democratização, ele participou de tudo isso. Um momento marcante disso todo foi logo depois da legalização do partido, quando ele assumiu a condição de membro do partido, participava da direção do partido lá no Rio de Janeiro. Aí nas eleições de 86, quando o Moreira Franco foi eleito governador, o partido apoiou. E houve uma discussão na direção do partido (da qual eu fazia parte) com relação a qual seria a nossa participação no governo. A conclusão a que se chegou é que nós deveríamos participar onde nós fôssemos mais capazes de prestar serviços à população do estado do Rio de Janeiro, com os quadros mais capazes de desenvolver uma política pública. E aí a saúde foi a prioridade do partido. Nós tínhamos um companheiro com condições de enfrentar o problema, que era o Sérgio Arouca – que foi ser o secretário de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Eu me lembro que teve uma reunião da Executiva da qual ele participou, depois de seis meses nós fizemos um balanço das relações com o governo, da nossa participação com o governo, já estavam tendo atritos, dentro da direção, tentativa de cooptação de quadros pelo Moreira Franco, aquele processo político de tensionamento se acirrando, o que é normal. O Arouca foi à reunião da Executiva falar da situação que estava lá. E ele fez um comentário que me marcou muito: “eu imaginava que sabia o que é o problema de saúde pública no Brasil, agora eu estou chegando a conclusão de que sabia muito, mas não sabia o suficiente; porque não há política de saúde pública que tenha condições de sucesso sem considerar o problema da emergência, porque ali é que está o centro da saúde; tem que conseguir formular uma política capaz de resolver o problema da emergência, em a linha de ‘desospitalizar’ a saúde, a linha da medicina preventiva, mas não dá pra ignorar o problema da emergência porque a crise estoura ali, e um gestor, pra ser eficiente, não sobrevive sem tratar desse problema.” Nessa época, a situação dos hospitais públicos do Rio de Janeiro já era essa que a gente vem acompanhando pela televisão, em todo o Brasil, embora a rede hospitalar do Rio seja a mais portentosa do país. Só que com essa crise toda de financiamento, não se sustenta o padrão de atendimento dos hospitais que você tinha na década de 50 (são hospitais, se não construídos, concebidos, por aí). Então ele levantou essa discussão (isso era uma discussão que angustiava ele) e depois saiu. Houve um conflito, e ele saiu da Secretaria. E continuou presidente da FIOCRUZ, ele sempre teve uma ligação muito grande com a FIOCRUZ.
Um outro momento importante foi a campanha do Roberto Freire. Nessa época eu era da Executiva Nacional do PCB, e nós decidimos propor ao partido lançar candidato próprio, era a oportunidade que nós tínhamos de buscar não só a renovação do partido (da sua política, orientação), mas também desencavar a “caveira de burro” que era a fragilidade eleitoral do partido. Um partido político influente na sociedade, com uma linha política que seduzia muita gente, que atraía os aliados, muitas vezes direcionava movimentos muito amplos, mas eleitoralmente um partido muito fraco. A candidatura própria estava focada nessa necessidade, de transformar o PCB numa legenda eleitoral forte. E a candidatura do Roberto foi um caminho, ele representava naquele momento a renovação do partido, tinha uma postura crítica à questão do autoritarismo no socialismo, apoiou apaixonadamente a tentativa do Gorbatchev de renovar a URSS com a Perestroika, era um momento muito especial. E nós precisávamos de um vice. Como o partido ficou isolado (ninguém queria fazer coligação com o PCB porque achava uma roubada em termos eleitorais), nós precisávamos de um quadro que fizesse a ponte com um segmento importante da sociedade. E aí a discussão da direção foi de qual seria o nome ideal, e chegamos à conclusão de que o melhor nome do partido era o do Arouca. O Roberto Freire era um político nordestino, apesar da questão da linha política que ele tem de ser um deputado nacional, que circula o Brasil inteiro, praticamente não faz trabalho eleitoral em Pernambuco – o que é um defeito, não é uma qualidade, sempre foi assim. E aí precisava de uma pessoa que tivesse livre trânsito, livre acesso principalmente junto à intelectualidade do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não só a intelectualidade artística e cultural (que era assim um segmento em que o Roberto Freire já tinha penetração), mas alguém que tivesse respeito e admiração na comunidade técnico-científica – das pessoas que mexiam com ciência, com tecnologia, que estavam na universidade, na academia. E o Arouca foi a escolha da direção. E ele não vacilou em nenhum momento em sair da FIOCRUZ (na época eu acho que ele era o presidente), ele deixou o cargo e assumiu a tarefa, passou a ser uma pessoa muito importante no partido. Não só foi importante na campanha, não só foi importante na direção do partido (com a influência que ele tinha sempre arejada, sempre iluminada), como também ele influenciou o Roberto – assim como o Roberto influenciou o Arouca. Eles dois eram uma dupla do barulho. Funcionavam com uma afinidade muito grande. Tinham uma convivência tão boa, tão excepcional, que mesmo quando eles divergiam (às vezes eles divergiam assim profundamente, por períodos largos), eles continuavam companheiros, continuavam discutindo, amigos, e mais cedo ou mais tarde alguém convenceria o outro, ou pelo argumento, pela razão, ou então porque a divergência também caduca, muda a conjuntura e a divergência deixa de existir como uma coisa de expressão prática. E essa característica da relação dos dois foi sem dúvida importante pro partido. Uma vez o Arouca brincando falou comigo, eu perguntei: “como é que tá lá na Câmara?” Ele disse: “tá difícil, porque nós só temos dois deputados no Congresso, e cada um tá votando de um jeito!” [risos] Quer dizer, não temos nenhum, porque um voto mais o voto do outro soma zero! Dois votos: votava um de cada lado, não valia nada, nenhum voto [risos]. Mas havia um compromisso de consciência entre eles, de que quando não era questão decisiva pro partido... Muitas vezes eu vi os dois divergir, mas não eram discussões importantes, não era divergências enormes, que envolviam concepções do processo político brasileiro da época.