Aos 29 anos, a personagem drag queen, uma criação do artista, professor e youtuber Guilherme Terreri Pereira, conquistou uma legião de fãs com suas aulas de linguagem didática e fácil acesso na web. No Instagram já são mais de 440 mil seguidores, mas tudo começou com seu canal do YouTube, Tempero Drag, atualmente com mais de 575 mil inscritos.
Formada em Arte Cênicas pela UniRio, bacharel em Letras e Literatura Inglesa na USP e professora particular de inglês e literatura, Rita também é colunista da Carta Capital, apresenta o reality Drag Me As A Queen e participou da Academia de Drags. Rita nasceu no Carnaval 2013 e Guilherme, então, viu que a personagem foi ganhando visibilidade, sendo requisitada para cada vez mais festas. Daí, nasceu o Tempero Drag, que surgiu como um canal de receitas veganas, mas que virou um espaço de educação e discussão política.
O visual de Rita remete ao das mulheres principalmente das décadas de 1940 e 1950 - com maquiagem sóbria, penteados caprichados e looks elegantes - e teve seu nome construído a partir de três referências: Rita Hayworth, atriz norte-americana que fez sucesso na década de 1940, ‘hunty’, gíria usada pelas drags para expressar admiração ou carinho, e ‘von’, termo alemão que remete a nobreza.
UMA LUTA FEITA PELA UNIÃO
"Consegui me aproximar mais das pessoas pelo diálogo artístico e uma das coisas que eu sei fazer é drag", analisa Rita sobre a relação próxima com o público, especialmente diante da importância de educar politicamente uma sociedade. Todos nós podemos auxiliar por caminhos e vivências diferentes e eu escolhi pelo processo da arte-educação", disse ela, que considera a união na luta um fator essencial. "Conseguir somar nossas forças e vozes. Nós, que somos a maioria, o 99% do mundo, as pessoas exploradas, as segregadas, sem acesso ao bem-estar, sem possibilidades concretas de uma vida digna, humana... E eu trabalho pela conscientização que, do outro lado, tem apenas 1% dos bilionários. Quero que a possibilidade seja acabar com a exploração."
O FEMININO EM UM MUNDO MACHISTA E MISÓGINO
Diferente de muitos LGBTQIA+, Rita conta que sua veia artística de drag se manifestou desde bebê. "Eu contei com um privilégio muito grande, que deveria ser direito. Tive uma comunidade de suporte, porque minha mãe era uma apoiadora incondicional de quem eu era. Quando eu era um bebê, tinha 2 anos, jogava muito vídeo game e era apaixonado pelo jogo Mario Kart, do Super Nintendo. Eu só jogava com a princesa Peach. Minha mãe contava que ela me perguntou por que eu só escolhia a princesa, tirei a chupeta da boca e respondi: 'porque ela se parece comigo'".
Rita, porém, mesmo com tanto apoio familiar e usando a arte como uma das ferramentas de educação e cultura com o público, diz que ainda há muito a avançar em uma sociedade dedicada a calar e anular as mulheres. "A gente está inserido em uma cultura e uma estrutura que são misóginas e patriarcais. Ela é machista, violenta, deslegitima as resistências femininas, coloca mulheres em competição e, ao mesmo tempo, equivale as mulheres a uma ofensa. O feminino é ofensivo. Ofensivo para o homem, caso ele se aproxime do feminino, e é ofensivo para a mulher. Cria-se o conceito de que a mulher é frágil, indefesa, que ela é a vítima. É um desejo de tornar a mulher frágil, indefesa e vítima. Desde muito cedo, o feminino se coloca sempre como uma impossibilidade pra todos. Se a mulher for feminina demais, ela também sofrerá represália, através de violência sexual, do seu silenciamento, do seu apagamento da História."
"Além disso, podemos pensar em modos linguísticos. As primeiras ofensas aos homens são ofensas que equiparam homens a mulheres, são ofensas ligadas à sua masculinidade. A primeira ofensa que a mulher recebe se refere à honra que ela deveria ter para com o homem, que deveria ser o possuidor do corpo dela. 'Forte como um touro' é um adjetivo e 'vaca' é uma ofensa. 'Cantar de galo' é um adjetivo e 'galinha é uma ofensa'. 'Você joga que nem uma menina', 'corre que nem uma menina', 'fala que nem homem'... todas essas violências de gênero. A normalização da palavra 'puto', por exemplo, designa a alguém bravo e 'puta' é mais uma ofensa contra as mulheres."
"TODO MUNDO ESTÁ FAZENDO DRAG"
Rita, então, explica que resignificou a figura da drag queen e que todos nós também temos nossas personas. "Quando a gente pensa na arte da drag, ela é marginal e de resistência. A cultura drag está intimamente ligada com a fundação de famílias, com a criação de espaços de segurança dentro da comunidade. Elas sempre foram acolhedoras, mantenedoras e organizadoras dentro da comunidade LGBTQIA+. A ideia é que a drag dá a possibilidade a todas, todos e todes, porque não é feita apenas por homens gays e travestis, mas é feita por homens cis e trans, mulheres cis e trans. A drag é uma forma de arte e pode ser feita por qualquer um. Todo mundo está fazendo drag, dependendo do ambiente e da situação em que você está inserido: seu eu na família não é o seu eu com o seu melhor amigo, que não é o seu eu com seu parceiro ou sua parceira, que não é o seu eu da adolescência, que não é o seu eu no trabalho".
BRASIL, O PAÍS QUE MAIS MATA LGBTQIA+
Mesmo diante de tantas conquistas na teoria, o Brasil ainda ostenta um vergonhoso e trágico recorde de país que mais mata LGBTQIA+ no mundo. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, 329 pessoas tiveram mortes violentas no Brasil, vítimas da homotransfobia, em 2019. Foram 297 homicídios e 32 suicídios, o que equivale a uma morte a cada 26 horas.
"Estamos em 2020 e ainda não conseguimos fazer jus à Constituição de 1988. Ela figura que é proibido passar fome, não ter moradia, é proibido estar desempregado. É 2020 e estamos tendo casos de [mortes de crianças negras como] Miguel, de João Pedro, da Agatha Félix, gerida por uma política de morte. Esse é o pano de frente para analisar o pano de fundo. O Brasil, em teoria, tem conseguido conquistas da civilização, do progresso. A gente conseguiu a criminalização da homofobia, reconhecimento da identidade de gênero, a união civil, mas ainda não saímos da posição de violência, de morte, de piada, de pecado, de crime, de deslegitimação", lamenta Rita.
O 'DIFERENTE DO PADRÃO' COMO AMEAÇA
Em sua análise, Rita diz que essa política de etnocentrismo e extermínio já vem desde o descobrimento do Brasil. "O colonizador europeu, cristão, branco, afiliado a uma heterossexualidade, é incapaz de reconhecer que existe outra forma de ser humano, pessoas performando outros tipos de personalidade, de gênero. E esse diferente precisa passar pela via da deslegitimação, porque é o que vai possibilitar o projeto de colonização, de apagamento, de dominação, de escravização. Olhar pro outro e não reconhecê-lo como ser humano. E uma dessas tecnologias é a de sexo gênero."
SAÚDE MENTAL EM UM PAÍS DOENTE
Dentro desse extermínio recorde de homossexuais, ainda temos a questão da saúde mental, que coloca o Brasil em outras lamentáveis colocações no ranking mundial: o de país que, há uma década, mais mata trans e travestis - foram 124 mortes em 2019, segundo o dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) - e é o oitavo em número de suicídios. "Gostaria de falar do direito à existência. Estou falando sobre a expectativa de vida de mulheres trans de 35 anos ou de que temos dados de que 90% das mulheres trans e travestis já passou por ou está relegada à condição de prostituição para sobrevivência, porque as outras possibilidades de existência estão encerradas para elas. Temos empresas que não contratam, temos esses corpos que não conseguem estudar porque são violados e violentados o tempo todo, esses corpos são expulsos de casa, são condenados pela igreja, não têm o direito de existir".
Em 2016, a OMS contabilizou 6,1 suicídios a cada 100 mil habitantes no Brasil. Já em 2010, foram registrados 5,7 suicídios a cada 100 mil habitantes no país, um aumento de 7% em quatro anos. Nos EUA, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês), 10,5 pessoas a cada 100 mil habitantes se matavam em 1999. Quase duas décadas depois, em 2017, esse número passou para 14 a cada 100 mil, o mesmo registrado em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial.
A LUTA PELO DIREITO DE EXISTIR
O direito de existir tem ido na contramão da atual gestão de Bolsonaro, segundo Rita. "Eu acho que o governo que a gente está vivendo cumpre uma função e um papel histórico. Estamos tendo a chance de nos defrontarmos com uma corrente subterrânea da história brasileira. O que a gente pode denominar bolsonarismo - neste recorte de período histórico, político e econômico - como a maioria dos fenômenos de extrema direita, está ligado a uma série de questões, como este resgate da figura do 'grande pai'. Na psicologia lacaniana, a figura do pai representa a interdição do desejo. O pai representa uma proibição, representante da lei simbólica. Na análise histórica, a figura do 'grande pai' é uma tentativa social de restaurar uma ordem simbólica. Quando o ministro da economia Paulo Guedes diz que 'empregada doméstica estava indo pra Disney, uma festa danada', a lei simbólica está sendo infringida. Elas [as empregadas domésticas] não podem existir. A deslegitimação dessas humanidades cumpre um papel político."
E mesmo lutando contra tantas adversidades, a sociedade ainda se depara com os conflitos entre os próprios cidadãos que, como Rita explica, também é uma forma tática de dominação. "Desde o Império Romano, uma das táticas de dominação está dada na frase "dividir, conquistar". [A escritora francesa] Simone de Beauvoir, no livro O Segundo Sexo, tem uma frase brilhante: 'talvez o opressor não fosse tão forte se ele não tivesse tantos cúmplices entre os oprimidos'."
ALIADOS NO ATIVISMO LGBTQIA+
Rita encerra a entrevista falando de outros ativistas que merecem atenção na luta LGBTQIA+. "Posso falar da Amanda Marfree, que faleceu recentemente em decorrência do coronavírus e era uma importante ativista trans. Renan Quinalha, professor de Direito da Unesp, é um intelectual, um militante, um ativista muito importante da divulgação científica, neste esforço de tornar o conhecimento acessível. Posso falar também da Maite Schneider, fundadora do TransEmpregos, da [cartunista e cargista] Laerte, da Márcia Rocha [primeira advogada transexual trabalhando com o nome social], todas na luta para levar dignidade às pessoas trans. Temos também Erica Malunguinho, que é nossa representante na Alesp [Assembleia Legislativa de São Paulo], que é negra e trans."
Temas das Palestras
- Educação
- Empoonderamento feminino
- Politica
- Diversidade
- Racismo